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A Balada de Buster Scruggs (2018) | Irreverência no velho oeste

Cena: um homem (Tim Blake Nelson), trajando um impecável terno branco, atravessa um cânion gigantesco tocando seu banjo e improvisando uma rápida música sobre sua vida e sobre o velho oeste. Momentos depois ele chega em um bar, dentro do qual é ameaçado por vários foras da lei que estão procurando algum motivo para brigar. Com um sorriso no rosto, ele mata cada um deles e depois parte para um salão na cidade mais próxima, onde, enfrentando outro valentão, torna-se conhecido e louvado por todos até que um novo melhor pistoleiro atira nele sem misericórdia, acabando com seu breve “reinado”. Fim.

É com esse rápido segmento que o mais novo longa-metragem dos Irmãos Coen se inicia. Em meio a uma incrível estética tragicômica e um competente trabalho de direção, A Balada de Buster Scruggs reconstrói as melhores narrativas do estilo faroeste sob uma perspectiva única, ácida e totalmente irreverente. Na verdade, a surpresa vem pela criação cheia de identidade e inesperada acerca de um dos gêneros mais retratados pela indústria cinematográfica, e não pelos nomes responsáveis pelo longa-metragem: afinal, Ethan e Joel já nos trouxeram o complexo e divertido Ave, César! (2016), além de serem responsáveis pelo roteiro do incrível Ponte de Espiões (2015). Agora, dois anos depois de seu último trabalho, a dupla retorna com uma de suas obras autorais mais desmedidas e mais incríveis.

O filme mergulha numa construção fragmentada, composto por seis episódios unidos pelo classicismo temático e separados pela complexidade e pelas inúmeras subtramas. Os Coen já conseguem realizar mágica ao não se renderem às obrigatoriedades da concepção antológica, preferindo se respaldar na simplicidade narrativa em detrimento da presunção desenfreada. É justamente por isso que cada pequena aventura funciona em si própria e abre seus braços para engolfar suas semelhantes. Em pouco mais que duas horas de duração, as iterações abrangem o melhor das desérticas planícies dos Estados Unidos, com arcos que vão desde o duelo de armas até a procura de ouro, das famosas apresentações itinerantes até a conturbada análise de heranças de famílias ricas. Ou seja, há muito para se ver e pouco tempo a se perder aqui.

Além de um elenco de ponta que inclui as presenças aplaudíveis de Nelson, James Franco, Liam Neeson, Zoe Kazan e muitas outras, os diretores, também responsáveis pelo maravilhoso roteiro, causam uma impressão assustadora no primeiro segmento, cuja totalidade com os outros cinco é-nos apresentada com o folhear de um livro de contos. É quase automático pensarmos que os Coen pretendiam fazer uma homenagem literária a Mark Twain, mas as inclinações a Clint Eastwood e até mesmo a Quentin Tarantino falam muito mais alto. A fotografia sistemática e empoeirada por vezes é deixada de lado para arquiteturas mais robustas que mesclam técnicas diferentes, prezando tanto pelo intimismo quanto pela caracterização artística plástica.

Temos, por exemplo, a trama envolvendo o personagem-título, que já foi comentada alguns parágrafos atrás. Aqui, Ethan e Joel invadem os musicais e criam algumas canções melódicas e de composição animada, contrastando com a matança desenfreada e o derramamento de sangue. Em Near Algodones, a comédia deixa de existir e convida de bom-grado a ilustra presença da sátira, trazendo Franco como um ladrão que se torna vítima de um roubo fracassado, é quase enforcado e depois, sendo resgatado por um homem desconhecido, toma a culpa por estar em posse de um rebanho sequestrado. Logo depois, passa por um injusto julgamento e aceita seu segundo fim na forca, mostrando a inevitabilidade do destino e como a mais ínfima centelha de esperança pode se apagar num estalar de dedos.

O drama familiar e determinista também ganha seu espaço em The Gal Who Got Rattled, trazendo Kazan como o acordo final entre dois empresários. Afinal, ela é a futura noiva do amigo de seu irmão e, ainda que não esteja apaixonada, entende a importância dessa transação. Entretanto, essa história logo é varrida para debaixo do tapete quando o irmão morre de varíola e ela fica apenas com o cachorro, cujos latidos são insuportáveis. À medida que se aproxima dos líderes da caravana da qual faz parte, ela cede aos pedidos de cada um deles e acaba por sacrificar o cão, colocando um fim à miséria de todas e mostrando de modo cruel e cômico, ao mesmo tempo, a relação entre o cavaleiro andante do faroeste e o meio no qual vive – mais uma vez, chegando a uma conclusão inesperada, chocante e, paradoxalmente, resignada.

O primo técnico alcança seu ápice no irretocável tête-à-tête intitulado The Mortal Remains, que dá costas ao drama clássico e dá espaço para a sutil insurgência do horror psicológico. Aqui, a fotografia de Bruno Delbonnel flerta com o sobrenatural, transitando quase de modo imperceptível de uma investida naturalista ao abuso de cores frias e complementares que brinca com a luz e a sombra de cada de um de seus personagens – e mais: os enquadramentos intimistas deixam a atmosfera mais tensa, opressora e diabolicamente interessante, capturando a atenção do espectador e deixando-o preso do início ao fim.

A mais nova obra dos Irmãos Coen é uma pérola inesperada e que se recusa até mesmo a tangenciar os convencionalismos do gênero do faroeste. Em uma concepção única e aprazível, A Balada de Buster Scruggs é uma antologia a ser relembrada pela posteridade por inúmeras razões – incluindo sua excessiva e proposital rebeldia cênica.

Escrito por Equipe Proibido Ler

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