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Hellboy (2019) | O décimo círculo do Inferno

Em 2004, Guillermo del Toro entregou em meio às primeiras insurgências de adaptações cinematográficas de quadrinhos, um dos melhores filmes do ano, Hellboy. O longa, protagonizado por Ron Pearlman, rendeu uma sequência quatro anos depois que fez tanto sucesso quanto o original e colocou o nome do cineasta em um patamar aplaudível que o consagraria por sua estética ao mesmo tempo cartunesca e sombria. Tal qual foi nossa surpresa quando Neil Marshall, onze anos depois do súbito término da primeira franquia, resolveu trazer as famosas e deliciosamente perturbadoras narrativas de Mike Mignola de volta às telonas. É claro que, considerando o impacto que tal personagem carrega até hoje na cultura pop, as expectativas alcançariam níveis drásticos – mas já aviso de antemão que a única coisa que o longa-metragem nos entregou foi uma plena decepção.

Hellboy (David Harbour) é uma criatura nascida do Inferno que seria utilizada como arma de destruição pelo exército nazista para combater seus inimigos. Entretanto, ele foi acolhido por um explorador sobrenatural chamado Professor Bloom (Ian McShane), o qual passou a tratá-lo como filho legítimo e treiná-lo para combater as criaturas das trevas que assolam o mundo dos mortais. Apenas com a constatação acima, é fácil acreditar que a produção em questão trará uma história de origem – mas não é isso o que acontece. É errôneo pensarmos que a obra de Marshall segue uma cronologia linear, visto que prefere nos apresentar a uma multiplicidade fragmentada que foge dos convencionalismos cênicos e, por essa razão, não ganha a atenção que merece e morre na beira da praia.

Aqui, o anti-herói deve enfrentar uma antiga força que está sendo reavida por forças malignas, força esta que data dos tempos do Rei Arthur e seus cavaleiros da Távola Redonda: Nimue (Milla Jovovich), também alcunhada como a Rainha de Sangue. Nimue funciona como um agouro do mal, a chave que trará o apocalipse à Terra e que moldará novamente as construções da sociedade, criando um cosmos onde monstros e humanos poderão viver em comunidade (na verdade, ela deseja trazer o Inferno para o plano terreno, mas utiliza de frases enobrecedoras para mascarar seu verdadeiro objetivo). Agora, com a iminência de seu retorno, Hellboy une forças com antigos aliados para combatê-la e finalmente compreender seu enevoado passado.

Os problemas não são difíceis de serem analisados, ainda mais por serem gritantes em meio a 120 minutos de pura tortura: Harbour talvez seja a única força que, mesmo não atingindo todo o potencial que já nos apresentou em performances anteriores, entrega-nos algo relativamente satisfatório. O obstáculo enfrentado pelo ator, porém, é o pífio roteiro e a má execução, que não contribuem para lhe dar a complexidade necessária – esquecendo-se até mesmo das sutis simbologias criadas por Mignola nas HQs. Os atos não possuem coesão entre si, com cada uma obstruindo o espaço de outra e arquitetando um amontoado de tramas vazias que vão de lugar nenhum para nenhum lugar.

O inquebrantável e vicioso círculo tem boas intenções, isso é inegável. Mas essa pura intencionalidade encontra barreiras facilmente previsíveis e lapidáveis que ganham uma materialização desnecessária e episódica, abrindo margens para interpretações tão superficiais que fica muito complicado retirar algum proveito do longa-metragem. Hellboy e seu pai obviamente funcionam como força-motriz para caçarem os objetos necessários para enfrentar Nimue – mas são as ramificações narrativas que pecam e roubam nossa atenção pelo excesso estético. Em determinado momento, o personagem-título sai em busca de uma cura para Alice Monaghan (Sasha Lane), a jovem e poderosa médium que salvou quando criança e que foi alvo de um dos feitiços da Rainha; em poucos minutos, o famoso mago Merlin entra na brincadeira e adiciona mais um elemento invasivo, contribuindo para uma incompreensão generalizada e infeliz por parte do público.

Marshall também falha na construção das aguardadas cenas de ação, começando pelo prólogo e estendendo-se para a “batalha final” que, na verdade, não passa de um conjunto de frases prontas e efeitos especiais de baixo orçamento. Em outra “memorável” sequência, Hellboy enfrenta um trio de gigantes em uma coreografia datada e tão artificial que chega a ser doloroso acompanhá-la sem desviar o olhar. O diretor tenta trazer um conceito ininteligível para as telas, com aproximações e afastamentos bruscos e uma visão imagética que beira o amadorismo. Nem mesmo os elementos de terror são explorados aqui, e isso vindo de um cineasta cuja filmografia inclui Abismo do Medo (2005).

De fato, é difícil recordar algum momento interessante e que realmente tenha valido a pena. Talvez uma sequência que já abarque composições mais coesas e que resvalam em referências expressionistas seja no breve diálogo que Hellboy traça com a milenar bruxa Baba Yaga (Emma Tate). É visível a preocupação do time criativo em honrar a mitologia nórdica que deu origem a uma personagem tão conhecida e perigosa quanto esta – e até suas inclinações formulaicas parecem funcionar dentro de um escopo movido por investidas satíricas e irônicas que falham miseravelmente. Ademais, nem mesmo a aglutinada trilha sonora carrega uma ínfima centelha de sentido.

Hellboy (2019) é um grande erro cinematográfico que deseja entregar muito mais do que consegue e acaba por criar um abismal vazio. Sem sombra de dúvida, era melhor que as quase perfeitas investidas de Del Toro permanecessem intocadas. Ao menos não sairíamos da sala de cinema tão decepcionados assim.

Escrito por Equipe Proibido Ler

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