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Necrópolis – 1ª Temporada (2019) | Porque a morte é superestimada

Necrópolis é uma série totalmente fora do convencional.

É certo dizer que, na história das produções seriadas brasileiras, algumas narrativas ousaram mergulhar nas divertidas irreverências dos gêneros televisivos, misturando drama, terror e comédia em um mesmo escopo. Obras como Toma Lá, Dá Cá (2007) e Pé Na Cova (2013) beiraram uma fusão quase perfeita de elementos contraditórios entre si, ainda que fossem movidos essencialmente pelas quebras de expectativas. Entretanto, o show criado e dirigido por Gabriel Faccini, Tiago Rezende e Tomás Fleck, ousou ir um pouco além do que já havia sido apresentado ao público até então, até mesmo conseguindo nos entregar algo muito mais aprazível do que prometia.

A trama gira em torno do recém-formado médico Richard (Rafael Pimenta), que após uma onda de má sorte que o impede de conseguir qualquer emprego na área, é contratado para trabalhar no último lugar que imaginava: o Instituto Médico Legal, também conhecido como IML. Já no primeiro episódio, os showrunners abrem margem para demonstrar como o protagonista detesta aquele lugar e remói-se por dentro toda vez que pisa em instalações tão fúnebres. E é claro que ele não teria aceitado o emprego caso sua situação fosse um pouco diferente. Porém, diferente do que podemos imaginar, essa tragicomédia faz questão de mantê-lo em uma construção convencional enquanto aposta em rebeldias criativas para cada um dos outros personagens.

Fazendo parte do inesperado time está Peterson (Eduardo Mendonça), o chefe de equipe egocêntrico e que beira um cômico fanatismo religioso que se perde em meio a tantas falas com duplo sentido. Apesar de tentar se mostrar como alguém empático, sua presença pomposa é o que descontrói a imagem serena e confiante que poderíamos esperar de uma persona desse tipo social, aumentando as sutis reviravoltas preparadas para os espectadores a cada capítulo. É certo dizer que o episódio piloto insurge em uma estética de propósito amador, emulando séries como The Office (2005) e Brooklyn Nine-Nine (2013): uma vez que nos acostumamos ao que o time criativo pretende nos entregar, é muito fácil ceder a uma trama envolvente e deliciosamente absurda.

Quando menciono os supostos amadorismos, não falo de forma pejorativa, e sim frisando a originalidade que Faccini e Rezende trazem para as telinhas. Os close-ups instantâneos, os cortes bruscamente fragmentados e as movimentações dinâmicas constroem uma identidade própria e única que se reafirma pela melancólica paleta de cores azulada e branca, mantendo-se em um firme estilo até os últimos momentos da season finale. A mórbida ambiência, que se afasta do obscurantismo excessivo, ganha um novo espectro bastante interessante e passível de ser absorvido pela audiência, ainda mais considerando a muito bem-vinda atuação unidimensional dos personagens.

Pietra (Joanna Kannenberg) e Rita (Kaya Rodrigues) são as personas que mais endossam a explicação fornecida no parágrafo acima: Pietra é uma secretária que parece cansada com sua vida e que é dotada de diálogos ácidos, entrando em conflito com os solilóquios enaltecedores e amadurecidos de sua namorada, Rita, a policial encarregada de supervisionar os laudos das autópsias. Ambas detêm personalidades distintas que contribuem para protagonizarem algumas pérolas hilárias e conversações sem sentido que, ao contrário do que podemos imaginar, são de extrema necessidade para o entendimento geral da obra. Em outras palavras, o choque entre as duas, desde o primeiro até o último capítulo, resume a mensagem principal da série: abrace o non-sense.

É nessa conjuntura que também insurge Elisa (Gabriela Poester), uma mulher dada como morta que acorda no meio do necrotério e que depois revela ao público possui transtorno de personalidade dissociativa. Seu ego, como ela mesmo explica conforme nos aproximamos do final, divide-se em dois e disputa o controle do corpo entre a introvertida e dócil Elisa e uma ramificação com traços psicóticos que atende pelo nome de Elizabeth. É divertido e assustador vê-las conversando sobre suas diferentes perspectivas sobre o mundo, ainda mais quando Elizabeth ameaça matar cada um dos “novos amigos” que seu exato oposto conquistou após uma vida cheia de desafios e obstáculos.

Eventualmente, é um pouco incômodo ver que o único que não corresponde às nossas expectativas é Richard. Por vezes, os diálogos ganham um patamar artificial e metódico demais, prezando por uma melodia polida ao invés de se jogar em uma naturalidade admiravelmente necessária, ainda mais considerando a estética principal da série. A atuação de Pimenta também não ajuda muito, beirando uma afetação que o deixa perdido no meio do caminho – recuperando o rumo que já trilhava nos últimos episódios. Essa artificialidade, todavia, não se restringe apenas a uma das personas, alastrando-se vez ou outra para cada um dos integrantes do elenco.

De qualquer forma, é Thiago Prade quem merece nossa atenção. Dando vida a Oséias, o principal responsável por abrir os corpos, funcionando como uma espécie de cirurgião-forense que trabalha lado a lado com Richard. Oséias é simplesmente cômico por sua frieza quando se trata dos cadáveres, mantendo-se em um mesmo tom de voz enquanto faz análises sombriamente inesperadas. Talvez o único defeito seja sua incisiva demonstração de vulnerabilidade em um dos episódios, que, por mais que case com a narrativa explorada, desconstrói nossa visão acerca de sua personalidade.

A primeira temporada de Necrópolis (2019) é surpreendentemente satisfatória, ainda que carregue consigo alguns erros óbvios e que poderiam ser premeditados. Entretanto, uma vez que o espectador se acostuma com o tipo de história e de construção cênica aqui tratados, é quase impossível – e assustador – querer sair da sala do IML.

Escrito por Equipe Proibido Ler

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