Em 2017, David E. Kelley e Jean-Marc Vallée criavam mágica ao entregar a um público saturado com dramas televisivos baratos e convencionais uma epopeica e trágica jornada focada em uma pequena cidade litorânea chamada Monterey.
Dessa forma, “Big Little Lies”, como ficou conhecida a suposta minissérie da HBO, tornou-se uma das grandes surpresas do ano não apenas pelo competente storytelling, mas também por um incrível e impecável elenco que liderou esse tour-de-force do modo mais angustiante possível.
É claro que a série não se restringia apenas aos comumente analisados roteiro e atuação, mas trouxe uma perspectiva interessante para a estética televisiva, com Vallée imprimindo sua marca através de escolhas quase cubistas e propositalmente fora de cronologia para que fôssemos levados fluidamente pela trajetória das nossas queridas protagonistas.
Entretanto, as coisas poderiam mudar (e para a pior) com a chegada do segundo ano, mas não foi isso que aconteceu: a renovação da obra para uma segunda temporada, que não estava nos planos originais da emissora, alcançou o mesmo nível do ciclo original, mesmo com as mudanças técnicas (Andrea Arnold sendo contratada para encabeçar os novos episódios) e a entrada de uma das antagonistas mais odiosas da década.
Para aqueles que não se recordam, o ano anterior terminou com uma chocante tragédia envolvendo a morte do violento Perry (Alexander Skarsgard) pelas mãos de Bonnie (Zoë Kravitz) numa tentativa de proteger suas amigas e, principalmente, Celeste (Nicole Kidman), que vinha sofrendo abusos físicos e emocionais por parte do marido desde o momento em que se casaram. Agora, meses depois de todas terem concordado em seguir com a mentira de que ninguém havia causado sua morte, uma nova figura surge na vida das heroínas: Mary Louise (Meryl Streep), mãe de Perry.
A princípio, sua presença é bem-vinda e aceita por todas, visto que Mary Louise se comporta de forma cândida, sutil, nunca perdendo sua classe mesmo nos momentos de pura tensão. Entretanto, logo percebemos que a personagem em questão apenas utiliza uma poderosa máscara que esconde sua personalidade passiva-agressiva e reais intenções de destruir a vida daquelas que julga responsáveis pela morte do filho – chegado até a duvidar da capacidade parental de Celeste e levá-la a tribunal para lutar pela guarda de seus filhos.
Leia mais: Chernobyl (2019) | A tragédia do real
Num escopo geral, a segunda temporada alcança um nível de agonia muito maior que a predecessora, principalmente pelo fato de não se expandir em cinco tramas principais, e sim canalizar os esforços criativos para um núcleo principal do qual todas fazem parte. Na verdade, o assassinato de Perry não fica em segundo plano, mas brevemente esquecido ao mesmo tempo que entra como o principal elemento para que a batalha entre Celeste e Mary Louise comece – e tudo isso é conduzido com exímia cautela e perfeição por Arnold que, do mesmo modo que seu mentor, deixa sua marca sem abandonar a identidade estilística dessa incrível produção.
Enquanto a mentira continua a permear as protagonistas, outras subtramas se desenvolvem com força considerável, ainda que não esteja no centro dos holofotes. Madeleine (Reese Witherspoon) enfrenta problemas em seu casamento quando um segredo vem à tona e ameaça ruir todo seu império; o legado de Renata (Laura Dern) como mãe, dona de casa e trabalhadora perfeita é destruído por causa das falcatruas de seu marido; e Jane (Shailene Woodley) é forçada a contar para seu próprio filho que sabe quem é seu pai, preferindo esconder de todos por ele ser fruto de um estupro – ou seja, de Perry.
Leia mais: Necrópolis – 1ª Temporada (2019) | Porque a morte é superestimada
Tais adições a uma trama já bastante complexa poderiam ceder a diversos problemas ou esbarrar em obstáculos estruturais conturbados demais para serem contornados. Felizmente, a habilidosa escrita de Kelley pode se afastar um pouco da obra original assinada por Liane Moriarty, mas expande o universo de Monterey em detalhes minuciosamente talhados, sem obrigar a cada um dos arcos ter seu ápice catártico. Às vezes, o drama novelesco pode ser uma boa entrada quando tratado sem muita presunção e utilizado para suporte de algo muito maior e mais trabalhado – como os extremos entrelaçados por Celeste e Mary Louise.
Mais uma vez, o elenco faz um papel diabolicamente delicioso, mas são Kidman e Streep que merecem nossa completa adoração. As duas, já navegando pela indústria do entretenimento em papéis memoráveis e aclamados, se veem novamente fora da zona de conforto. Enquanto Streep dá vida à principal vilã, que se vê frente a frente com seus piores medos apenas no pungente season finale, Kidman mostra que sua persona não é alguém submissa a anos e anos de tortura e humilhação, e sim uma poderosa mulher que não deve ser testada. Qual é nossa surpresa quando ela mesma resolve enfrentar sua nêmese no tribunal, resgatando seus anos como advogada e conseguindo, praticamente por conta própria, manter os filhos sob seus cuidados.
O segundo ano de “Big Little Lies” é mais enérgico e enervante que o primeiro, mas ambos estão num mesmo patamar honrável dentro das produções televisivas contemporâneas. Em um misto de suspense e drama familiar, todos os aspectos técnicos e estéticos são pensados com um propósito, dosando as quantidades de sutileza, ironia, explosões e histeria de seus personagens em prol de nos comover do início ao fim.
Comentários
Loading…