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Anomalisa (2016) | Um mergulho de cabeça no vazio

É impossível assistir os filmes de Charlie Kaufman (Quero Ser John Malkovich) sem sentir a estranheza duvidosa do seu “eu vs suas relações com o mundo ao seu redor”. Suas obras possuem a peculiaridade de tocar em questões dolorosas da realidade. Quem nunca teve vontade de apagar algumas memórias e ter uma vida nova como em “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”?

Em Anomalisa conhecemos a história de Michael Stone, dublado por David Thewlis (Macbeth: Ambição e Guerra), uma espécie de guru do serviço de atendimento ao consumidor – o famoso “SAC”. Ele está na cidade de Cincinati, nos Estados Unidos, onde tem uma palestra agendada. Muitas pessoas o conhecem lá por ser autor de um best-seller sobre como melhorar o atendimento ao cliente e como se conectar melhor com os consumidores. Mas, pela estranheza de tudo, Michael não possui o mínimo tato na relação pessoal com o próximo.

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O personagem é totalmente apático ao ter uma conversa fiada com um taxista, pois para ele é um martírio conduzir um pequeno diálogo – aquele velho e típico papo onde o taxista que pergunta de onde você é, para onde vai, o que faz na cidade, fala dos pontos turísticos e o que sobre o que há nos arredores – entre o aeroporto e o hotel. Coisas simples como fazer check-in ou pedir um serviço de quarto parecem horríveis para o guru das relações corporativas com os seu bem mais importante, o próximo.

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Mas os problemas não param por aí. Para Stone, as pessoas são todas iguais, possuem um tom de voz masculino (dublagem por Tom Noonan – 12 Monkeys, a série) – inclusive as mulheres – e o mesmo rosto. O protagonista não consegue se relacionar nem mesmo com sua família (esposa e filho) e não entende muito bem o motivo pelo qual isso acontece. Existe uma barreira em tudo… Até que ele conhece a tímida Lisa Hesselman.

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Dublada por Jennifer Jason Leigh (Os 8 Odiados), a personagem é uma atendente de telemarketing que foge à regra de todas as pessoas ao seu redor. Ela possui rosto e voz diferentes de todos os seres humanos com quem ele está acostumado conviver desde que saiu de casa (ou antes, vai saber). Lisa é excepcional, o que a torna uma “anomalia” – palavra muito utilizada em seu livro de sucesso.

Para Lisa, Michael é um ídolo, sendo ela uma grande fã de seu trabalho. Para Michael, Lisa é tudo o que ele sempre sonhou. Consequentemente chega o momento deles se conhecerem melhor e, a partir daqui, eu passo a bola para você, pois é preciso absorver a mensagem ou sensação que o longa de animação quer te passar.

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Anomalisa começa chamando atenção pela forma como foi feita. Não se trata de uma animação similar às que estamos acostumados a ver na indústria, principalmente de estúdios como Pixar e DreamWorks, elaboradas em 3D e com efeito fluido. Esta é uma animação em stop motion que foi financiada através de crowdfunding, com bonecos feitos de silicone para dar uma sensação maior de realidade dirigida por Charlie Kaufman e Duke Johnson (Beforel Orel: Trust).

Leia também: Filmes animados em Stop Motion – Parte 1

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Nesta obra vemos coisas que jamais teríamos visto abordadas com tamanha simplicidade, como o ato de tomar banho, o nu frontal e o sexo. Tudo isso da forma mais humana e real possível. Essa foi exatamente a intenção de Kaufman e de Johnson ao nos apresentar Anomalisa. O stop motion foi utilizado para dar vida a um roteiro que poderia muito bem ser executado por pessoas reais.

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A profundidade e a complexidade do roteiro cumprem com sua função. Não houve a intenção de travestir uma animação, que geralmente é encarada como um produto destinado ao público infantil, num roteiro destinado a adultos (como aconteceu em Divertida Mente, por exemplo, onde as crianças podem até achar bonitinho as emoções por conta das cores e das formas que possuem, mas o roteiro é algo muito complexo para o seu entendimento). Kaufman impõe clareza e uma abordagem que vai direto ao ponto em todos os sentidos, independentemente da gravidade e sem receio de tocar em algumas feridas.

 

Tudo isso fica implícito nos protagonistas. Michael, por exemplo, é um cara que sofre de uma doença chamada Síndrome de Fregoli, um transtorno que o leva a acreditar que as pessoas ao seu redor são capazes de se disfarçar para se fazerem passar por outras. Isso não permite que ele reconheça a individualidade e as diferenças do mundo à sua volta, e acaba vivendo num universo uníssono.

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Lisa, por outro lado, sofre de problemas mais “comuns” entre as pessoas da nossa sociedade como baixa auto estima, auto-imagem inferiorizada e depressão, encontrando em livros, filmes, séries e em ídolos uma forma de preencher o vazio. Isso acaba fazendo com que ela não enxergue tudo crescendo e se modificando à sua volta. Para Michael, ela é a Lisa perfeita, ou melhor, a “Anomalisa“, mas bastou um pouco mais de conectividade para haver um ruido na conexão – novamente, é melhor eu parar por aqui para não entregar segredos da trama.

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Assistir Anomalisa é como olhar para dentro de si e refletir sobre como você se relaciona com as pessoas e com o mundo. Como entender que você é mestre em algo, se dentro de você e na prática, tudo o que você prega não faz sentido? Você passa a lembrar dos conselhos que deu aos seus amigos e quando se viu na mesma situação, não conseguiu ajudar a si mesmo, tampouco colocar em prática as palavras que proferiu ao próximo na mesma força e intensidade. Até o humor difere do comum. Rir ou chorar? Tentar compreender Anomalisa é ainda pior, aliás, melhor dizendo, é complexo e deveras desgraçante da cabeça.

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Anomalisa é como mergulhar de cabeça no vazio ao tentar transportar o que foi visto na pele de Michael Stone para a realidade em que eu e você vivemos.


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Escrito por Bruno Fonseca

Fundador e editor-chefe do PL. Jornalista apaixonado por quadrinhos, filmes, games e séries.

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