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Labirinto | Uma carta de amor a Lewis Carroll

Quando ouvimos o vocábulo labirinto, é quase automático nos recordamos de “Labirinto – A Magia do Tempo” (1986) um clássico protagonizado por David Bowie e Jennifer Connelly. O filme de ficção fantástica, apesar de ter sido um fracasso de crítica e de bilheteria (não chegando a arrecadar nem metade de seu orçamento), caiu no gosto popular e foi redescoberto anos depois apenas para consagrar a versatilidade artística de Bowie, que já havia nos presenteado com algumas ótimas atuações – vide “O Homem que Caiu na Terra” (1976), por exemplo. Connelly, por sua vez, ganharia prestígio pelo papel que marcou sua carreira, “Réquiem para um Sonho” (2000), mas também tornou-se quase impossível desassociá-la de sua participação na tentativa falha de reinventar ou acrescentar algo ao gênero.

Tal qual foi nossa surpresa quando A.C.H. Smith resolveu novelizar o longa-metragem de Jim Henson, livro que no Brasil foi publicado em 2016 pela editora Darkside Books. Labirinto conseguiu capturar toda a essência do filme ao mesmo tempo que acrescentou diversos elementos novos que marcam uma clara emulação de clássicos da literatura do início do século passado. Smith, em seus escritos miméticos, criou uma jornada epopeica atemporal e anacrônica, colocando nas páginas amareladas o melhor da irretocável jornada do herói – com certas críticas que podem passar despercebidos pelos olhos menos atentos.

A narrativa principal – e única, se deixarmos de lado as breves aparições lateralizadas do antagonista – gira em torno de uma jovem garota que beira a adolescência, chamada Sarah. Ela sofre com a precoce morte da mãe, uma atriz respeitada e dotada de ensinamentos valiosos, e sente-se numa obrigação de enfrentar a madrasta, a qual considera ser uma vilã saída dos contos de fada e de odiar veladamente seu meio-irmão Toby. Porém, esse desprezo construído, mascarado por um claro ciúme que não existia quando sua família era formada por ela, a mãe e o pai, acarreta em drásticas conseqüências que começam com a invocação de uma perigosa e manipuladora criatura: o Rei dos Duendes, Jareth.

Após um acesso de raiva, a menina acaba por recitar um canto mágico inventado que o materializa no quarto do irmão e o rouba, levando-o para seu castelo para transformá-lo em goblin. Ela tenta explicar que tudo aquilo não passou de um mal-entendido, mas suas lamentações pelo desaparecimento do infante de nada adiantam. Entretanto, Jareth diz que ela pode tentar resgatá-lo se conseguir desvendar o labirinto-título que cerceia sua morada – e detalhe: a garota tem apenas treze horas para fazer isso, salvar o irmão e voltar para casa antes de sofrer a fúria do Rei. O problema é que as coisas são bem mais complicadas do que parecem.

E se tratando do romance, Smith praticamente escreve uma carta de amor a um nome que certamente o influenciou – Lewis Carroll. É notável as similaridades encontradas entre as ambientações surrealistas do jardim-labirinto dos arredores do castelo em questão com “Alice no País das Maravilhas” (1865). E não apenas isso, mas a própria composição dialógica dos personagens beira o proposital absurdo que o aproxima ainda mais da obra vitoriana. Hoggle, a pequena criaturinha que mais atrapalha que ajuda nossa heroína, assemelha-se aos múltiplos aliados com quem Alice cruza caminho em seu retorno para casa – e ambos ganham contraste pelo modo como falam.

Sarah traz um tom mais polido, fruto da convivência com a mãe e seus amigos artistas, mas não perde a oportunidade de irritar aqueles que considera ser uma “pedrinha no sapato”. Hoggle, seguindo os passos de um hibridismo mascarado entre Chapeleiro Maluco e Gato de Cheshire, fala em enigmas ininteligíveis reafirmados pelos outros múltiplos coadjuvantes que nos arrancam risadas pelo fato de serem extremamente estranhos. Jareth, por sua vez, apresenta uma envolvente solenidade que não pensaria duas vezes antes de te apunhalar pelas costas – coisa que faz várias vezes ao perceber que Sarah é uma ameaça para seus domínios. Há uma sequência que inclusive comprova esse paralelismo narrativo, cujo foco é roubado por Teodoro e Deodoro (representação microcósmica dos gêmeos Tweedledee e Tweedledum).

A edição também não deixa a desejar em nenhum momento: os floreios trazidos no começo de alguns capítulos e, até mesmo na belíssima e simples capa dura, não desviam nossa atenção e não prometem mais do que conseguem entregar – muito pelo contrário. Para aqueles não familiarizados com o “Labirinto – A Magia do Tempo” (1986), as primeiras folhas servem como um singelo convite para um mundo novo e diferente de tudo o que você já viu, arquitetado pela mente deliciosamente perturbada de Henson e eternizado pela lúdica habilidade de Smith. E mais: o romance conta com esboços que auxiliam a caracterizar alguns personagens sem nos direcionar para uma perspectiva, e sim abrindo inúmeras possibilidades.

Labirinto é uma escolha certa para aqueles que buscam algo breve, porém revelado com uma profundidade inesperada. É certo dizer que a história, por mais que emule clássicos de forma tão incisiva, traz um brilho próprio que nos arranca gargalhadas e suspiros de ódio do começo ao fim – e que, no final das contas, é memorável e satisfatório o suficiente.

Escrito por Equipe Proibido Ler

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