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O horror cósmico por trás de Gotham City

E como isso transformou o Charada de Matt Reeves

Muito já se falou sobre como o personagem central de The Batman tem sua retratação impecável. É um filme que por si só marca o gênero de super-heróis: o invade e o refresca com uma cinematografia com aroma autoral e que abre as brechas para que muito seja discutido sobre ele, sendo um marco mais do que necessário nesse gênero que vem gerando cada vez mais especulações sobre seu fim.

Em qualquer cenário, The Batman se consolida como um neonoir bastante competente à sua tradição, bebendo o suficiente de suas fontes sem dever nada para elas. E com o Charada, abertamente baseado em um maníaco da vida real, o Zodíaco, não é diferente.

Há muito o que aprendermos sobre narrativa olhando para o personagem, e neste texto você entenderá como.

Fanatismo nas redes e Heráclito

16 de Julho

Minha vida foi uma charada cruel que não consegui resolver, sufocando minha mente, sem uma saída. Mas hoje vi uma única palavra neste fichário localizado na mesa ao meu lado: ‘Renovação’. A promessa vazia que me venderam quando criança naquele orfanato. Bastou olhar para dentro pra finalmente entender. Minha vida inteira me preparou pra isso. O momento em que eu saberia a verdade. Em que poderia revidar e expor as mentiras deles. Se quiser que as pessoas entendam, entendam de verdade, não pode simplesmente dar a verdade. Tem que confrontá-las, torturá-las com perguntas aterradoras, assim como me torturaram. Agora sei o que devo me tornar.

Este é o trecho lido por James Gordon, tirado diretamente do diário do antagonista. Há muita coisa interessante a se observar, como o fato de tanto mimetizar o prólogo do filme com o diário de Bruce Wayne e seu “Projeto Gotham” quanto, em ambas as vezes, apenas o dia e o mês serem citados, sem menção direta ao ano em que o longa se passa. Isso acontece para que seja dada a impressão de atemporalidade, um descompromisso formal com o ano, evitando que o filme envelheça rápido. Conseguimos ter uma noção de que se passa próximo aos dias atuais quando a repórter no início do filme diz que faz vinte anos que a família Wayne foi assassinada, e considerando que dia 31 de Outubro cai em uma terça-feira em 2023, conseguimos encontrar mais exatidão dentro da cronologia do filme. Mas por não ser citado diretamente no roteiro, o filme toma suas liberdades para que sua mensagem seja passada aos nossos tempos e envelheça bem no decorrer da década. Não só isso, como permite que os paralelos da influência digital duvidosa deixados pelo protagonista se mantenham relevantes, prolongando seu debate.

O grupo de seguidores do personagem, ao fim do filme, se mostra maior do que o esperado. Ele os reunia, fanatizando-os conforme a cruel verdade que descobriu sobre a corrupção intrínseca de Gotham, e assim o ar de guia espiritual do personagem ganha contornos de terrorismo e critica a força que os fóruns da internet dão para que esse tipo de ideia de extermínio invada a cabeça das pessoas, como verdadeiros vírus de doutrinação e sede de vingança.

Se quiser que as pessoas entendam, entendam de verdade, não pode simplesmente dar a verdade. Tem que confrontá-las, torturá-las com perguntas aterradoras, assim como me torturaram”, já este trecho é bastante semelhante com o que alguns estudiosos apontam de um certo filósofo pré-socrático. Heráclito foi considerado o pai da dialética e foi tomado como “Obscuro”, pela mensagem na obra atribuída a ele, “Sobre a Natureza”, estar escrita de forma muito semelhante às sentenças do Oráculo.

Já o que alguns estudiosos apontam, no caso, é que o estilo oracular, com enunciados aforismáticos, se deu na intenção de levar as pessoas à reflexão. Para os gregos, as coisas do mundo possuem um logos que só pode ser compreendido após um período de confusão. Que a clareza só pode ser alcançada após o choque, como um desentorpecimento. Basicamente, o Charada quer dizer que para que o povo de Gotham acorde, ele tem de ser chacoalhado, chocado, ter suas crenças jogadas contra a parede, para que então possam alcançar a verdade. Como ele fez. Expor as raízes podres da cidade, a mentira da renovação, guiar seus adeptos e ter consigo um objetivo quase que “messiânico” está bastante atrelado a uma grande referência para Matt Reeves, Seven, que traz John Doe em sua jornada de cometer crimes baseados nos pecados capitais. Aliás, a trilha sonora do antagonista trazer uma ópera de Ave Maria e sua ideia ser “afogar” Gotham pelos seus pecados já reafirmam suficientemente essa ideia, não?

Lovecraft e Gotham

Outro ponto muito importante sobre a narrativa é como a narrativa de como o personagem interpretado por Paul Dano também explora ares de horror cósmico. Como vemos em:

“Minha vida foi uma charada cruel que não consegui resolver, sufocando minha mente, sem uma saída. Mas hoje vi uma única palavra neste fichário localizado na mesa ao meu lado: ‘Renovação’.”

Conforme pode encontrar neste artigo da Galileu, a essência do cosmicismo pode ser encontrada na seguinte narrativa: “Um cientista se depara com um acontecimento insólito. Homem racional e cético, resolve desvendá-lo e começa a investigar por conta própria. A cada novo indício encontrado, fica mais evidente que o ocorrido não obedece às leis criadas pela ciência humana; mas, dotado da curiosidade e da soberba características dos homens de razão, ele persiste. Quando enfim encontra o agente ou a causa do evento, é tarde demais: trata-se de algo que sua mente não é capaz de entender. Acaba enlouquecendo ou suicidando-se.”

E essa é basicamente a história de Edward Nashton. Troque “cientista” por órfão tentando descobrir as bases da corrupção e do fracasso em sua cidade e voilà, a sujeira de Gotham City torna-se uma criatura indefinível, inominável e imbatível, com todos os cidadãos sendo mera poeira urbana, todos falhos, caídos sem nem saber o porquê. O Pinguim é esse fruto, a Mulher-Gato é esse fruto, o Batman é esse fruto e o próprio Nashton não foge de seu horror. Horror que precisa ser combatido conforme a fúria incitada nos outros, como citado anteriormente.

E o uso do Batman, o que nos leva ao nosso próximo ponto.

O Morcego e o Palhaço

“Você me mostrou o que era possível. Você me mostrou que só o que é preciso é medo e um pouco de violência direcionada. Você me inspirou.”

Essas são as palavras de Edward ao vigilante mascarado logo após sua prisão, no momento em que explica sua motivação. Aí encontramos outro ponto de subversão: durante o filme todo temos a perspectiva pré-concebida das charadas como diversão, como choque, como desafios livres e diretos ao homem morcego. Mas Matt Reeves brinca com a expectativa ao revelar que, na verdade, o Charada se inspirou no Batman. Em todos esses momentos, ele buscou recrutá-lo em sua jornada – e até o final acreditou que tinha conseguido. O plot twist, termo queridinho pelos cinéfilos, se mostra então não apenas válido para o protagonista; mas ao antagonista também. Na mesma medida em que o Batman entende que  plano do Charada era maior do que o esperado e que foi usado durante todo o tempo para que no fim retirasse Falcone de sua toca, para o Charada o abalo veio quando descobriu que em nenhum momento o vigilante quis ajudá-lo. E então ele se decepciona com o Batman. Não apenas por ele não ser um aliado, mas também por não ter descoberto toda a verdade de seu plano, revelado na sequência. 

No fim, o Charada que considerou o filme todo ter um aliado, o encontrou apenas nas cenas finais, em seu diálogo final com o palhaço da cela ao lado. Seu arco, tão bem executado quanto o do protagonista, finalmente é concluído às gargalhadas.

Escrito por Diego Muntowyler

Marketing digital durante o dia, escritor durante a noite. De ficção a conteúdo nerd, acredito na palavra como arte e é hora de parar de engavetar as coisas. Que a Força esteja com você.

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