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Que Horas Ela Volta? (2015) | A mais pura simplicidade de uma obra da sétima arte

É comum torcer o nariz quando rola um convite para assistir um filme nacional, ainda mais quando o convite é feito assim:

– Vamos ver Que Horas Ela Volta?
– Que filme é esse?
– Um com a Regina Casé.
– Aff, aquela do Esquenta?
– Sim, essa mesmo!
– Não vou, tô de boa.

E assim, ambos acabam perdendo duas coisas bastante valiosas: a oportunidade de apreciar uma produção nacional e a chance de conhecer o trabalho de alguém que vai muito além de um programa popular na televisão aberta brasileira.

Que Horas Ela Volta? é um filme diferente em relação ao que foi produzido no país durante os últimos 10 anos. Lembro claramente da fase do cinema novo, de filmes como “O Que é Isso Companheiro”, “O Quatrilho”, “Central do Brasil”, “Bicho de Sete Cabeças”, “Abril Despedaçado”, “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”. Há muito mais títulos que merecem ser citados, mas vamos focar a estes, que são filmes que chamaram atenção pela sua qualidade e também pelo fato de, no começo, muita gente ter “torcido o nariz” para assisti-los, também.

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Que Horas Ela Volta? | A mais pura simplicidade de uma obra da sétima arte

Que Horas Ela Volta? me pegou de surpresa. Não vou mentir: confesso que torci o nariz também. Contudo, acompanhando o dia-a-dia e as notícias que envolvem a sétima arte, foi possível perceber críticas positivas surgindo por todos os lugares e um boca-a-boca fenomenal sobre ele. Enfim, fui até o cinema para assistir este longa, e me surpreendi positivamente com o que vi.

Eu não havia testemunhado tanta qualidade desde “Central do Brasil” (1998), filme que assisti por obrigação devido a um trabalho escolar. Gostei tanto, mas tanto mesmo, que quando os créditos subiram, me senti completamente imerso naquela história, esquecendo o motivo que me levara até aquela sala de cinema.

Que Horas Ela Volta? é escrito e dirigido por Anna Muylaert e conta história de Val (Regina Casé), uma empregada doméstica nordestina, natural de Pernambuco, que está em São Paulo buscando melhores oportunidades na vida. Val deixou sua vida inteira para trás e, em São Paulo, consegue o emprego de babá na casa de uma família de classe alta, residente do Morumbi (um dos bairros mais nobres da cidade).

Neste lugar, Val cuida do filho do casal Barbara (Karine Teles) e Carlos (Lourenço Mutarelli), Fabinho (Michel Joelsas, “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”). A protagonista se vê participando da vida de uma família ausente e cheia de compromissos profissionais. Devido a isto, Fabinho toda atenção e carinho que Fabinho recebe durante seu crescimento vêm da empregada doméstica e não de seus pais, uma espécie de “segunda mãe”.

Que Horas Ela Volta? | A mais pura simplicidade de uma obra da sétima arte

Treze anos se passam entre o prólogo e o início da trama, transportando o espectador para uma situação diferente. Val se encontra economicamente estável, Fabinho, já adolescente, vive a famigerada fase do pré-vestibular e o casal Barbara e Carlos se fazem presentes. Este novo mote é carregado por sombra e frieza, algo que inunda suas vidas, mas não atinge Val.

Certo dia ela recebe, de repente, uma ligação de sua filha Jessica (Camila Márdila), uma pessoa praticamente desconhecida, dizendo que irá para São Paulo prestar vestibular e precisará ficar na casa da mãe. Val se vê na situação de pedir ajuda aos patrões, para poder ficar com a filha um tempo na casa onde trabalha, até que elas possam arrumar um canto para morar. É a partir daí que a trama engata de vez e o público embarca numa viagem sem escalas para a vida dessas duas famílias. O que acontecerá a partir daqui é o que motivará a aclamação que Que Horas Ela Volta? conquistou.

Anna Muylaert construiu tudo de forma extremamente cuidadosa. A simplicidade, a forma com que construiu cada diálogo deste roteiro e cada cena que dirigiu do mesmo, são notáveis. Você se verá dentro de uma família de classe alta totalmente diferente daquelas mostradas nas novelas, minisséries e/ou demais programas desenvolvidos pela TV aberta brasileira.

O público estará diante de uma empregada doméstica de verdade: ela não tem um corpo escultural, não se mantém maquiada e com o cabelo impecável, e tampouco utiliza um uniforme fetichizado. Só faltou vê-la conversando com o locutor de alguma rádio popular, encontrada num dial qualquer. Anna Muylaert não criou algo superficial em momento algum. Todos os pontos percorridos pela diretora com o objetivo de criticar a sociedade atual, bem como o alívio cômico visto em cena, foram de uma forma simples e, por vezes, sutil.

Que Horas Ela Volta? | A mais pura simplicidade de uma obra da sétima arte

Regina Casé está fora de série. Sua performance faz com que o espectador se esqueça, momentaneamente, do programa popular que ela comanda todos os domingos. Não me entenda mal, não tenho nada contra o programa, mas assistir todo o potencial desta atriz cria um contraste enorme com os alívios cômicos que ela sempre executa na tv.

Tudo que me vinha à minha cabeça eram lembranças de pessoas que conheci e estavam sendo representadas pela sua personagem, devido à naturalidade aplicada em cada cena, transição, diálogo, trejeitos e atitudes. Sua dedicação ao emprego, aos patrões, ao filho deles, que na verdade era filho dela, e sua vontade de corrigir erros do passado para construir um novo presente… Tudo foi representado com naturalidade. A luz deste filme vem, também, de seu trabalho e do peso que ela carregou nas costas de forma surreal e inacreditável.

Que Horas Ela Volta? | A mais pura simplicidade de uma obra da sétima arte

A atuação de Camila Márdila não deixa por menos, seu papel é fundamental para conduzir e costurar a trama. Jessica é uma adolescente com outra cultura e outra vivência. É uma garota que veio do nordeste decidida sobre seus objetivos e o caminho que terá que percorrer para atingi-los. Acima de tudo, ela trouxe consigo alguns segredos que são fundamentais para o desfecho do longa.

Que Horas Ela Volta? | A mais pura simplicidade de uma obra da sétima arte

O núcleo familiar, formado por Lourenço Mutarelli, Karine Teles e Michel Joelsas, traz o tempero essencial para o molho de uma família da classe que representam. Durante suas cenas, percebemos diversos detalhes que acompanham a bela atuação de cada um deles, como a apatia e postura totalmente fora da casinha de Carlos; a mesquinhez, soberba e superficialidade de Barbara; e o lugar ocupado por todo adolescente que tem os pais com as características dos de Fabinho. Foram todos muito bem apresentados e desenvolvidos.

Todos os personagens têm um papel fundamental para fazer este filme acontecer. E não, nós não vemos alguém destoando na intensidade e na dedicação para fazê-lo. Como eu disse no início, tudo foi feito com muito cuidado e devido a isso, nada soa forçado.

Que Horas Ela Volta? | A mais pura simplicidade de uma obra da sétima arte

Mesmo usando poucas locações e, em boa parte, se passando dentro da casa onde Val trabalha, o longa não cansa. A fotografia dentro de um ambiente desses é algo mais simples de rodar no 100%. A diferença na paleta de cores entre as cenas de Val e as cenas que envolviam o núcleo familiar são perceptíveis, principalmente quando o foco está em Carlos. Sua apatia traz algo mais ameno, porém cru e escuro. Já as cenas com Val e Fabinho, por exemplo, são mais vivas e intensas – mesmo em ambientes mais escuros e fechados.

Que Horas Ela Volta? é um filme diferente e, quando eu penso em uma palavra que o resuma, é SIMPLICIDADE. Estive diante de um longa natural, que transcorre uma harmonia que eu já estava com saudades de apreciar há um longo tempo. Um filme que não apela no humor, nos bordões, na crítica social, não enfoca em algo para chamar a sua atenção e te desvia das pontas soltas no roteiro.

Que Horas Ela Volta? mostra o mundo de duas famílias e de duas mães. Mostra a diferença entre elas e a antítese que cada uma vive. Prova que, independentemente dos erros que cometeram com seus filhos, é possível se redimir do passado e mudar o presente para que a história não volte a se repetir em outras esferas.

Que Horas Ela Volta? é um filme que merece a sua atenção. É um filme que merece os 96% que carrega no Rotten Tomatoes. É um filme que faz jus à nomeação de representar o Brasil no Oscar 2016.

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Que Horas Ela Volta? | A mais pura simplicidade de uma obra da sétima arte

Portanto: vá ao cinema, leve a família, os amigos e quem puder ir junto. Minha única reclamação é sobre as salas de exibição da película, pois muitas delas fazem parte do circuito alternativo e não no circuito comercial de cinema. De qualquer forma, isto não é culpa da produção, da direção, dos patrocinadores – que por sinal são muitos (só assim para fazer um filme no Brasil) – ou de seus distribuidores.

A culpa é minha, sua e de quem não consome aquilo que nós mesmos fabricamos, simplesmente por pensar da forma como descrevi no início, ou por pensar que cinema brasileiro é o mesmo dos tempos da boca do lixo.


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Escrito por Bruno Fonseca

Fundador e editor-chefe do PL. Jornalista apaixonado por quadrinhos, filmes, games e séries.

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