in

Super Drags (1ª Temporada – 2018) | A representatividade em foco

A primeira animação brasileira da Netflix causou um barulho considerável antes mesmo de sua estreia. Afinal, pelo que pudemos compreender, Super Drags procuraria se basear no crescente número de desenhos animadas para adultos, como Rick and Morty, F Is for Family e (Des)Encanto, e quebrar tabus que, mesmo em pleno século XXI, continuam a criar desnecessárias controvérsias que nem deveriam estar em voga. De qualquer forma, a acidez já trazida pelos teasers deixou bem claro que a nova série da plataforma definitivamente não era para crianças – afinal, há bastante conteúdo gráfico e diálogos bem pesados que, afastando-se da roupagem do “moralmente aceitável”, causam um incômodo proposital inclusive nos setores mais conservadores da sociedade que se recusam a sair das próprias bolhas.

A narrativa gira em torno de um trio de drag queens super-heroínas chamadas Lemon Chifon (Sérgio Cantú), Safira Cyan (Wagner Follare) e Scarlet Carmesim (Fernando Mendonça), que adotam suas respectivas identidades secretas como funcionários de uma loja de departamento e combatem o crime quando for necessário. Entretanto, diferente do que podemos imaginar, as protagonistas vão muito além da construção do heroísmo clássico: elas dão voz às minorias e fazem questão de afrontar quando bem puderem. Afinal, a própria caracterização, ainda que traga um viés cômico que é próprio da identidade da série, desconstrói os convencionalismos padrões e recria personalidade únicas: gays “pintosas”, afeminadas e que sabem muito bem o que querem. E, além disso, são pessoas que se complementam e que possuem cada qual um complexo arco dentro de um escopo de repressão compulsória.

Mesmo sendo heroínas, as drags sofrem constante ataque de certas figuras antagônicas, as quais simbolizam as parcelas retrógradas da comunidade – e que claramente alfinetam certas figuras públicas que constantemente impõem sua visão de mundo de forma a negar a aceitação de diferenças. De qualquer forma, é interessante vê-los em arcos de pura consternação frente a outras construções que não têm medo de serem quem são e não se importam com olhares atravessados. Muito pelo contrário, são exatamente esses os dotados de complexidade, enquanto os vilões se resumem a um estereótipo proposital, cuja principal característica é a repetição de bordões e frases prontas. No episódio A Cura Gay, essas “sutilezas” são colocadas em voga e revelam, numa ambiência macrocósmica, a crescente hipocrisia de um grupo que não admite a felicidade alheia caso esteja fora de seus próprios padrões.

Lemon, Safira e Scarlet são muito diferentes entre si e, ao mesmo tempo, compartilham de trejeitos que as unem e dão maior fluidez para a história. Ainda que com apenas cinco episódios, a primeira temporada consegue trazer os melhores elementos das animações atemporais – incluindo um aplaudível e nostálgico 2D que nos transporta diretamente à década de 1990 – e focos narrativos únicos com começo, meio e fim. E mais: o cliffhanger é aplaudível em diversos sentidos e deixa um gostinho de quero mais delicioso. Afinal, é bem provável que, mesmo em meio a críticas negativas sem sentido, a plataforma renove um de seus mais escandalosos produtos originais para futuros anos. É claro que isso não seria possível sem a conexão entre o trio e as subtramas que se delineiam com organicidade e praticidade.

Silvetty Montilla também participa da série, dublando a chefe das Super Drags, Vedete Champagne. E, como bem podemos imaginar, ela não é uma agente/guia ortodoxa: ela talvez seja dotada das frases mais engraçadas de todos os episódios, com momentos de puro choque cênico – pela explicitação desmedida – e de um sarcasmo hilário frente a suas pupilas e até mesmo aos outros personagens. Ainda que a base resida com força no humor, há momentos de dramatismo coming-of-age (em suas devidas proporções). Conforme nos aproximamos da season finale, as protagonistas passam a enfrentar seus maiores medos, concretizados literalmente pela insurgência de Lady Elza (Rapha Vélez), uma supervilã que deseja roubar o highlight da comunidade LGBTQI+ (um elemento próprio de seus membros) e tornar-se jovem para sempre. São essas construções em especial que conversam com o público ao qual a obra é destinada, mostrando que a luta é diária e vai muito além da perspectiva individual.

Pabllo Vittar, um dos expoentes nacionais e mundiais da música pop contemporânea, mergulha de corpo e alma ao encarnar a diva Goldiva, cujo show está ameaçado de ser cancelado pelo prefeito da cidade por motivos essencialmente homofóbicos. Entretanto, ela não se restringe apenas ao glamour e às poses, mas também abre espaço para certas subtramas emocionantes e que conversam inclusive com o passado da dubladora. De qualquer forma, Vittar faz um ótimo trabalho, seja com uma performance inebriante, seja com a música-tema, orquestrada em uma mistura de techno e eletropop que cumpre sua função de envolver os telespectadores.

Àqueles que se sentiram incomodados com a expressividade da série, digo e reafirmo que Super Drags não está aqui para lhes representar, e sim dar voz a uma das minorias que dia após dia devem reconquistar sua existência para não caírem no esquecimento. As duras críticas apresentadas à comunidade evangélica e à heterossexual dialogam principalmente com quem ainda crê que a homossexualidade é uma doença a ser tratada – não é à toa que esses conservadores em questão caem na ridicularização por até mesmo dizerem que o “vírus gay” veio com o meteoro que varreu os dinossauros da Terra (um viés bem extremo do retrocesso). De qualquer forma, esse é um show que nos contempla e diz, sequência após sequência, que você pode ser quem quiser e ninguém pode nos privar dessa liberdade.

Se a animação conseguiu causar comoções de repúdio e de “manutenção dos valores tradicionalistas”, então alcançou com sucesso seu objetivo: incomodar. Talvez tenha ido muito além, mostrando que a heterossexualidade de certos indivíduos é muito mais frágil que um copo de cristal. E citando até mesmo a música-tema da obra, ninguém vai se deitar: a comunidade LGBTQI+ existe e está aqui para ficar.

OBS.: a dublagem em inglês conta com inúmeros nomes conhecidos, incluindo as RuGirls Shangela, Willam, Trixie Mattel e Ginger Minj.

Escrito por Equipe Proibido Ler

Produzindo conteúdo sobre o universo geek há mais de uma década. Nos acompanhe também no Instagram, Twitter e Facebook.

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Loading…

Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald (2018) | Um revés para J.K. Rowling

Magnifica 70 | União, mistério e perdição embalam a terceira temporada