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Gloria (2018) | A humanidade de Sebastián Lelio

Em uma de suas últimas atuações, Julianne Moore, uma das rainhas performáticas do cinema contemporâneo, encarnou uma professora de linguística que observou impotente sua rápida e sagaz mente se desmantelar devido ao Mal de Alzheimer no drama tour-de-force Para Sempre Alice (2014). Cinco anos depois, Moore retorna para as telonas para mergulhar no monótono e paradoxalmente conturbado cotidiano de Gloria Bell, cujo nome é emprestado ao título – e pode ser que a atriz esteja caminhando para sua próxima estatueta do Oscar com mais uma entrega soberba que explora as múltiplas camadas da psique humana nessa mais nova e nostálgica tragicomédia de costumes.

No remake de sua própria obra, o cineasta Sebastián Lelio resolve transpor sua convencional narrativa para o cinema hollywoodiano de forma a se afastar das fórmulas que poderiam muito bem reger o cosmos em questão. Afinal, sendo um dos principais expoentes do cinema pós-ditatorial do Chile, era bem provável que Lelio colocasse certas críticas sociais em meio a uma história que gira em torno de Gloria. De certo modo, ele até faz isso, mas nutrindo de uma sutileza ímpar que nos conduz através dos atos com fluidez e envolvência – algo diferente do proposital La Sagrada Familia (1995), cuja trama é respaldada por uma sensual crueza e uma dura explicitação dos fatos. O diretor inclusive prova sua versatilidade ao retomar sua própria obra e trazer novamente às telonas um tom calmo e pacífico, buscando delinear as “aventuras” da protagonista em seu arco amoroso.

Gloria é uma mulher de sessenta anos de idade que rouba a cena em todos os momentos pelo tratamento irreverente que dá à sua vida. Volta e meia, ela se aventura pelos night clubs de Los Angeles enquanto tenta manter contato com os filhos, com os amigos, e lidar com seu trabalho e os sonhos que acabou construindo – talvez fugir um pouco da rotina que é constantemente explorada pelo proposital ciclo arquetípico. Logo no primeiro ato, é interessante observar como Lelio resgata alguns elementos de conterrâneos como Pablo Larraín para arquitetar um pano de fundo crível, conhecido pelo público e, ao mesmo tempo, perscrutado por algumas escolhas técnicas e estéticas que fogem do convencional – como a obrigatória câmera na mão que auxilia na sensação intimista e dramática carregada pela personagem.

Eventualmente, Gloria cruza caminho com Alfred (John Turturro) em uma das noitadas, e acaba se relacionando com ele de forma improvável e recheado de dúvidas. Enquanto ela se entrega de corpo e alma para o primeiro enlace romântico depois de doze anos de seu divórcio, Alfred parece ser uma pessoa introvertida que, por fim, se revela um homem extremamente babaca que não pensaria duas vezes em largá-la em um jantar de família ou em um restaurante em Vegas para voltar para as filhas e para a ex-mulher – no caso, é isso mesmo o que faz. Acontece que ele, mesmo solteiro e com seu próprio negócio, parece um cachorrinho a mando das filhas ou das crises de sua antiga esposa, que fazem de tudo para incomodar nos momentos mais inconvenientes.

A narrativa de amor, que até tenta buscar elementos das comédias românticas equilibradamente, não se restringe apenas ao escopo da “alma gêmea”, no qual duas pessoas cujo caminho é trilhado em meio a adversidades apenas para se unirem em uma conclusão previsível; o conceito de amor é tratado com mais profundidade e vai para além de rótulos sociais, divagando acerca dos laços entre mãe e filho – aqui interpretados por Michael Cera e Caren Pistorius -, e até mesmo entre dois antigos amantes que agora convivem em harmonia, mesmo não estando mais juntos. Este talvez seja um dos poucos longas-metragens em que o cuidadoso elenco compartilha de uma deliciosa química, seja em sequências movidas pelo humor, seja naquelas respaldadas no drama e na angústia existenciais.

Alguns podem encarar o filme como uma história datada e que não ousa. Porém, se pararmos para analisar, esse é justamente seu propósito: apresentar uma pessoa comum que muitas vezes nos passa despercebida, que esbarra em nossas andanças para o trabalho ou de volta para casa, e que carrega consigo desejos, sonhos, decepções e até mesmo uma raiva de certas atitudes que é obrigada a engolir. Lelio tem a ideia aqui de recuperar uma humanidade perdida e de mostrar que a nossa protagonista não é uma máquina, e sim alguém cujo principal objetivo e viver a vida um dia de cada vez e do modo mais inesperado possível. Afinal, como muitos de nós, ela não se contenta apenas com uma zona de conforto – não é à toa que vai para aulas de risada ou queira viajar para a Espanha do nada ou até mesmo resolva se deliciar com as sensações relaxantes e terapêuticas da maconha.

Gloria Bell caminha para um hilário final que representa o momento que todos aguardávamos: o amadurecimento da nossa protagonista e sua rendição a si mesma. Ela não precisa de ninguém para ser completa, e sim prefere escolher aqueles que farão parte de seu ciclo pessoal – e, na última sequência (talvez esperável demais), dança ao som de Laura Branigan, na canção que carrega seu nome, e percebe que, mesmo tarde demais, ela pode ser quem bem entender sem deixar de se entregar àquilo que lhe faz bem.

Escrito por Equipe Proibido Ler

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