'The Boys' e 'Falcão e O Soldado Invernal': quem são os garotos da América?
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‘The Boys’ e ‘Falcão e O Soldado Invernal’: quem são os garotos da América?

A politização está cada vez mais forte nos filmes e séries de super-heróis

Super soro, herói duvidoso carregando a bandeira – juntamente com suas contradições -, questões políticas modernas no mundo dos super-heróis, com direito a superterroristas. Se trata de “The Boys” ou “Falcão e Soldado Invernal”? Por que não falar dos dois?

O Mito

Super-heróis são o mito americano perfeito. Não o mito da vez, não uma simples modinha. Eles representam a autoimagem americana, estão intrinsecamente ligados com a história moderna do país. Eles sobreviveram ao que o detetive ácido dos filmes p&b não sobreviveu, ao que o xerife incorruptível e silencioso dos faroestes não sobreviveu, ao que o veterano de guerra que retorna à casa depois dos traumas do Vietnã não sobreviveu. Talvez por ser um mito que agrega um pouco de cada; talvez por, em sua perspectiva, que insiste em protagonismo, seja o povo que decide escrever sobre seres fantásticos capazes de salvar o mundo, o universo, o multiverso, a realidade.

E nosso papel ao receber esse conteúdo externo e tanta influência cultural pesada é, claro, olhar com ceticismo. Alimentar uma visão realista e bem fundamentada sobre como isso nos afeta e, mais ainda, o que podemos extrair de informação relevante e compreender como essa grande indústria se enxerga.

Mais do que o Homem-Aranha ou o Superman, que sempre trouxeram a bandeira e seus significados de forma discreta e idealizada, nos filmes e séries recentes nós fomos expostos a duas abordagens diferentes sobre um mesmo conceito: a ressignificação do herói que carrega a bandeira. O mais novo é o Capitão America da série “Falcão e o Soldado Invernal”, reapresentado nas figuras de John Walker e Sam Wilson. O segundo, que já circula há um tempo como uma versão distorcida de tanto idealismo, tem o título de Capitão Pátria, da série “The Boys”.

Recentemente o canal do YouTube Quadro em Branco fez um vídeo bastante competente sobre a relação do paladino da Marvel e a sua passagem através do tempo. Você pode – e deve – assistir dando play no vídeo abaixo.

A diferença é uma linha tênue

'The Boys' e 'Falcão e O Soldado Invernal': quem são os garotos da América?

A série de seis episódios de “Falcão e o Soldado Invernal” – o último sendo excepcional e simbolicamente Capitão América e o Soldado Invernal -, apresentou uma intenção de debate e aprofundamento na mitologia do personagem. Nada mais natural, pois enquanto no MCU vemos Steve Rogers perdendo a fé nas instituições e abandonando as estrelas até seu retorno triunfante, Sam Wilson deve fazer o caminho contrário.

A série já deixa isso claro desde o primeiro momento, mostrando ele sendo traído quando o escudo é entregue a John Walker. Diferentemente de seu antecessor e de seu sucessor, Walker clama a si pelo menos umas trezentas vezes a alcunha de novo Capitão América, e desde a primeira aparição já sabíamos a que o homem veio: ser uma propaganda ambulante, vender bonecos e dar autógrafos a crianças. Uma paródia pura, a distorção de todos os modelos, uma pitada de autoconsciência na revisão do personagem.

John Walker é apresentado como o soldado perfeito, mas que pouco a pouco vamos entendendo não ser tão perfeito assim. Afinal, como os homens inadaptáveis a sociedade que retornam da guerra, ele foi feito para matar. A série discute seu papel e atuação, bem como seus contrastes com as figuras dos outros capitães. Vale dizer que a jornada do anti-herói ao ser deposto do cargo e a forma que visa a autoconsciência na crítica à criação destas máquinas de matar é muito bem executada, mas ainda assim limitada pela forma como a mídia mainstream de super-heróis vai abordá-los. Papas na língua que “The Boys” não tem.

Em um mundo em que a velha narrativa do que era a bandeira americana não funciona mais, em que vilões russos e caricatos denunciam superficialidade em vez de um exemplo a ser combatido e, mais ainda, em que retratar o super-herói como um mero agente do governo gera mais rejeição do que empatia, a indústria precisou se adaptar aos novos modelos. Nesses anos de Marvel Comics, vimos a propaganda de guerra se tornar uma propaganda de direitos civis.

A aura de Watchmen

'The Boys' e 'Falcão e O Soldado Invernal': quem são os garotos da América?

Seria mentira dizer que “The Boys” foi o primeiro a trazer essas pautas. Na realidade, a série fez o papel que “Watchmen” teve nos quadrinhos em sua época, subvertendo os velhos mitos em uma perspectiva de fora – afinal, Garth Ennis, criador de “The Boys”, é norte-irlandês. Por isso o autor mostra uma acidez que só poderia ser alcançada por ter uma perspectiva de fora, por abordar o fato de que talvez o problema não seja quem representa a bandeira em cada tempo, mas o que é a bandeira em si.

Basicamente, enquanto John Walker não “representa o que a América deveria ser” e tem sua antítese em Seteve Rogers e reforçada por Sam Wilson, Capitão Pátria está sozinho. Em seu universo, ele é o super-herói americano. Ele é a representação das listras e estrelas e da política externa, ele é o poder bélico encarnado e a sua sociopatia não é nada senão um reflexo de uma persona vazia e criada para representar intimidação. E os paralelos não param por aí.

Quando o herói é desconstruído, quem são os vilões?

'The Boys' e 'Falcão e O Soldado Invernal': quem são os garotos da América?

Sim, temos visões bem ácidas, apesar de suas distinções, sobre aqueles que deveriam nos proteger ou proteger o povo americano, já que é o mínimo. E ambas as séries buscam dar respostas diversas pra isso, afinal em “The Boys” torcemos pelo grupo de Hughie Campbell, que visa a derrocada dos superseres. Enquanto isso, a série da Marvel mostrou algumas figuras estrangeiras para preencher sua demanda: Os Apátridas e o Barão Zemo.

Tempesta, a maníaca responsável por fazer com que Capitão Pátria perca muitas de suas estribeiras midiáticas, em um arco sensacional faz com que seu bandeiroso favorito perceba que ele não precisa agradar aos democratas; e que ela, o experimento nazista ideal, faça este trabalho de manipulação de massas.

Desta vez a série da Marvel também não deixou passar a oportunidade de dizer que, na boca de Barão Zemo, o super-soldado também apresentou um ar de projeto eugenista. Lá atrás, Will Eisner já lançou a ideia, bem como foi fomentada no debate social do que o super-herói representa e o que ele tem a ver com o Ubermensch (super-homem em tradução livre do alemão) apresentado no livro “Assim Falou Zaratrusta”, de Nietzsche, e o conceito supremacista. Mas claro que dentro da Disney isso deveria ser denunciado pelo vilão. O mesmo vilão com quem Sam Wilson concorda sobre Marvin Gaye, mas ainda assim um vilão. Alguém fora da linha, mas certo.

Terrorismo

Do outro lado do espectro dos malvados, temos os superterroristas. De um lado eles são chamados de superterroristas mesmo, do outro de Apátridas. O contexto para o surgimento do grupo de Carly e sua afronta ao que os governos mundiais fizeram após o blip é convincente, mas se na série da Marvel vemos a personagem perder a linha em seu discurso e entregar os motivos do porquê Sam Wilson precisa derrotá-la, na série da Amazon a discussão, é claro, apresenta limites menos definidos. Afinal, Capitão Pátria e Trem-Bala distribuem Composto-V pelo mundo, os terroristas montam seus atentados e o ‘super-herói’ arma uma narrativa martírica após a queda de um avião, e nós sabemos que ele tem sangue nas mãos. Só mais um jogo sujo em uma trama que nos faz desacreditar de qualquer jogo limpo.

Afinal, o que esperar dos supers?

'The Boys' e 'Falcão e O Soldado Invernal': quem são os garotos da América?

Ambas as tramas trazem suas qualidades e relações contextuais. Há quem prefira a visão mais esperançosa sobre a atuação dessas histórias no imaginário popular, e talvez a inocência nas telonas e telinhas tenha se perdido. Cada vez mais os frutos estão aí, basta colhê-los: “Invencível”, “Legado de Júpiter”, a própria série tardia de “Watchmen”. “Nem todos os super-heróis são bonzinhos”, já estampava a propaganda do filme de 2009 que adapta a obra de Alan Moore. Claro que a desculpa da época para heróis mais soturnos era porque as cores e a fantasia não funcionariam na tela cheia, enquanto hoje a violência acontece pós-cores e pós-fantasia. Enfim, questão de contexto.

Sabemos que Marvel e DC não são bestas nem nada. Essas obras com roteiros mais desprendidos e independentes, adaptados de quadrinhos tão irreverentes quanto, fazem seu sucesso pontual e engajam seu público, mas sabemos que no fim essas histórias mais pesadas e com discussões minimamente mais interessantes, são assimiladas e vistas dentro das tramas de heróis mais populares e bem encarados.

Afinal, por mais que dentro da ficção exista um abismo de diferença entre a figura do Capitão América e a paródia sádica que é o Capitão Pátria, sabemos que na vida real não existe tanta diferença assim. Nós, amantes da cultura pop, compraríamos bonecos dos dois.

Escrito por Diego Muntowyler

Marketing digital durante o dia, escritor durante a noite. De ficção a conteúdo nerd, acredito na palavra como arte e é hora de parar de engavetar as coisas. Que a Força esteja com você.

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